Em evento no museu Inhotim, em Brumadinho (MG), brasileiros que conquistaram prêmio em 2023 contaram sobre o projeto, focado em construções de povos indígenas e quilombolas
Por Vanessa Centamori, de Brumadinho (MG)
“Descubra como o Brasil conquistou o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza com o Projeto Terra, que explora a relação entre arquitetura, território e justiça ambiental, destacando a contribuição de comunidades indígenas e quilombolas.”
O Seminário Internacional “Transmutar: modos de estar no mundo, gestos que conservam a vida”, aconteceu no museu Inhotim, em Brumadinho (MG), entre os dias 28 e 29 de setembro. Em conversa no primeiro dia do evento, os brasileiros Gabriela de Matos e Paulo Tavares relembraram a conquista do prêmio Leão de Ouro na 16ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2023.
Os arquitetos foram premiados pelo Projeto terra, que explora a relação entre arquitetura, território e justiça ambiental. Seu trabalho d[a destaque à importância das comunidades indígenas e quilombolas.
Gabriela conta que a ideia do projeto surgiu da proposta da curadora da Bienal, Lesley Lokko, de investigar experiências em territórios afrodiaspóricos — regiões que receberam povos que migraram da África. A dupla argumenta que os conhecimentos afro-brasileiros e indígenas, até então, tinham pouca representatividade no pavilhão do Brasil, majoritariamente branco e sudestino.
“Os conhecimentos, as relações que esses povos têm com a terra, no nosso entender, apontam para um possível futuro, de uma arquitetura que pode reparar um mundo fraturado”, afirmou Paulo.

Raízes em Brasília
A primeira parte do Projeto terra foi batizada “De-colonizando o cânone”. “Era uma sala que buscava repensar o patrimônio modernista brasileiro, principalmente a cidade de Brasília”, explica Paulo Tavares, que é natural do Distrito Federal (DF).
O curador lembra que, apesar de ser associada popularmente ao desenho de um avião, Brasília foi inspirada, na verdade, na imagem de uma cruz católica. Essa foi a referência colonial utilizada pelo autor do Plano Piloto da cidade, o arquiteto Lúcio Costa.
“Toda a mitologia do modernismo vai falar que aquilo [Brasília] era um deserto, mas, na verdade, é território de povos originários”, destaca Tavares. “A gente vê que era uma área habitada por diferentes culturas, diferentes línguas. E também que Brasília é um território negro”.
A cerca de 50 km ao sul da capital brasileira está o Quilombo Mesquita, estabelecido há trezentos anos. Um pouco mais longe, a 250 km ao norte da cidade, fica Kalunga, o maior quilombo do país. “É uma história apagada dentro da história das artes e da arquitetura”, diz o especialista.
“Arquiteturas da terra”
Em uma segunda sala na Bienal de Veneza, intitulada “Lugares de origem, arqueologias do futuro”, o Projeto terra mostrou arquiteturas reconhecidas recentemente como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN).
Entre os locais, estavam a Casa da Tia Ciata e o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro; a Tava, como os Guarani chamam as ruínas das missões jesuítas; o Sistema Agroflorestal do Rio Negro na Amazônia; a Cachoeira do Iauaretê dos povos Tukano, Arawak e Maku; e o Terreiro da Casa Branca (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), o primeiro monumento negro tombado no Brasil.
A curadora Gabriela conta que o terreiro está ameaçado pela construção de um edifício de 7 ou 8 andares, construído de forma irregular. “Os terreiros, de forma geral, historicamente vão sendo empurrados para as margens, para as bordas da cidade. Essa história a gente já conhece”, diz. “Mas essa malha urbana chega e essa disputa continua, ela é constante”.
O Terreiro da Casa Branca só foi tombado em 1984, pouco antes do fim da Ditadura Militar. Ele foi o primeiro lugar onde, após a vitória do Brasil em Veneza, o Leão de Ouro foi exibido ao público. Sobre a conquista, a ialorixá Mãe Neuza de Xangô disse que “o Leão veio para defender e proteger o território”.
“De alguma maneira, o Leão tem uma dimensão reparatória”, avalia Paulo Tavares. “Isso é talvez o mais significativo para gente. Não tínhamos dinheiro para levar ninguém para lá [Veneza], para as pessoas trazerem as comunidades [quilombolas e indígenas]. Isso era muito frustrante, porque geralmente você está trabalhando numa exposição desse porte e está fazendo aquilo, digamos assim, para inglês ver, em certo sentido”, problematiza.
Terra preta de índio
Na exposição, os curadores apresentaram também a “terra preta de índio”, um solo altamente fértil e rico em carbono encontrado em toda a Amazônia. Foi originalmente formado entre 500 e 2500 anos atrás, sendo uma evidência arqueológica de sistemas agroflorestais tradicionais de antigas civilizações indígenas.
A terra adquirida para a mostra, porém, não foi coletada diretamente da floresta, mas de uma empresa europeia, que comercializa esse solo devido a suas propriedades de mitigar as mudanças climáticas. A ciência produz esse material artificialmente sob o nome de “biochar” e corporações estão registrando novas patentes.
Enquanto isso, ONGs ambientais e organizações indígenas denunciam a atividade como biopirataria. “Essa terra [adquirida na empresa europeia] prova que esse tipo de conhecimento [tradicional] de desenho da paisagem é o conhecimento mais contemporâneo que a gente tem hoje, mas que, ao mesmo tempo, esse patrimônio está sendo expropriado”, afirma Tavares.
Papo sobre natureza, em meio à natureza
Gabriela de Matos é mineira, mas esta foi a primeira vez que ela falou ao público de Minas Gerais sobre sua conquista na Bienal de Arquitetura de Veneza, segundo observa a curadora artística do Seminário Internacional “Transmutar”, Marília Loureiro, que faz parte da equipe do museu Inhotim.
A porta-voz do instituto observa que o Projeto terra, embora aborde arquitetura, “está totalmente conectado com o tema de arte e natureza, de repensar modelos sociais que não usam a terra de maneira extrativista”.

Além de um bate-papo com os arquitetos, o Seminário “Transmutar” promoveu debates, situações artísticas e momentos de trocas de experiências sobre biodiversidade, clima, território e cultura. O evento contou com convidados internacionais, como Gladys Tzul Tzul, intelectual indígena Maya k’iche’ da Guatemala, e a antropóloga norte-americana Elizabeth Povinelli.
Todos os encontros ocorreram fora do auditório, em meio à natureza do Inhotim, que é o maior museu a céu aberto da América Latina. “A gente vai ganhando também com esse seminário uma intimidade com o museu e com as plantas, e vai entendendo que esse museu é vivo”, observa a curadora artística.
“[Visitar o Inhotim] é um jeito muito diferente de estar em contato com a arte, de estar em contato com a natureza, de poder experimentar esse território cheio de contradições e delicadezas, então eu acho que vir para cá é uma experiência totalmente única”, acrescenta.
Fonte: revistagalileu.globo.com
Link da Matéria: https://revistagalileu.globo.com/ciencia/meio-ambiente/noticia/2024/10/saiba-como-o-brasil-levou-o-leao-de-ouro-na-bienal-de-arquitetura-de-veneza.ghtml
Palavras-Chave: Leão de Ouro Bienal de Veneza, Projeto Terra, Arquitetura e justiça ambiental, Comunidades indígenas e quilombolas, Gabriela de Matos e Paulo Tavares, Arquitetura afrodiaspórica, Inhotim seminário Transmutar, Arquitetura sustentável Brasil.
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